De facto, nos últimos anos, diversos estudos demonstraram, claramente, que após um episódio de gastroenterite aguda existe o risco do desenvolvimento de sintomatologia crónica que pode durar meses a anos e que se assemelha em inúmeros aspetos a algumas desordens funcionais gastrointestinais, sobretudo à dispepsia funcional (DF) e a síndrome do intestino irritável (SII).
A partir dessas observações, tem sido grande o interesse dos pesquisadores em conhecer o real papel das mudanças qualitativas e quantitativas da microbiota intestinal na etiopatogenia das síndromes funcionais. Algumas observações desses estudos suportam essa hipótese: a) a microbiota e a produção de gases no cólon, particularmente hidrogênio, decorrente da fermentação de resíduos não-digeríveis em pacientes com SII e diarreia funcional diferem dos achados em indivíduos sadios; b) os sintomas da síndrome do supercrescimento bacteriano do intestino delgado são semelhantes aos descritos em diversas SFGI, e podem, eventualmente, iniciar após um episódio de gastroenterite aguda; c) a manipulação terapêutica da microbiota intestinal com emprego de antibióticos e/ou probióticos, contribui, com frequência, para melhora dos sintomas digestivos. Já foi demonstrado que a suplementação com Lactobacilos, em pacientes portadores da SII associa-se com diminuição de sintomas relacionados à produção de gás. Isso se deve à inibição da colonização e menor aderência de microrganismos patogênicos aos enterócitos, aumento na secreção de defensinas e diminuição da síntese de citocinas pró-inflamatórias.
Vários trabalhos demonstraram que a microbiota intestinal está alterada em um subgrupo de pacientes com SII e que, nestes casos, existe concomitantemente uma inflamação da mucosa caracterizada por infiltração celular, com alteração no número de mastócitos e linfócitos T, anormalidades do RNAm da interleucina 1 (IL-1), redução da relação entre IL-10 e IL-12, aumento na circulação de IL-6, IL-8 e do fator alfa de necrose tumoral, justificando assim a denominação de SII pós-infeção (SII-PI).
Marshall e colaboradores evidenciaram que 44% de 2.069 indivíduos expostos a águas contaminadas com Escherichia coli e Campylobacter jejuni apresentaram episódio de gastroenterite aguda, dos quais 27,1% evoluíram com sintomas crônicos compatíveis com o diagnóstico da SII (predomínio da forma diarreica), configurando assim a SII-PI.
Outros pesquisadores demonstraram uma incidência da SII-PI em 16,7% dos pacientes. O risco relativo de desenvolvimento da SII-PI, seis meses após uma gastroenterite bacteriana foi de 11,1% (4,4-27,9).
As infeções causadas por alguns microrganismos como Campylobacter jejuni, yersinia, salmonella, shigella são consideradas as de maior risco para o desenvolvimento da SII-PI. Tem sido evidenciado que além das bactérias, alguns vírus (rotavirus, adenovirus, calicivirus) e parasitas (Giardia lamblia, Blastocystis hominis) podem também estar envolvidos no desencadeamento das síndromes funcionais.
Dados epidemiológicos publicados nos últimos anos sugerem que a SII-PI ocorre em 3 a 30% (média de 10%) dos doentes com gastroenterite e que existem alguns fatores considerados de risco para o seu aparecimento como sexo feminino, idade (indivíduos mais em jovens), toxicidade da bactéria, enterite mais prolongada, vómitos, presença de eventos estressantes durante o curso da infeção (por exemplo, ansiedade e depressão) e a gravidade do quadro geral, baseando-se na necessidade de buscar um serviço de urgência e hospitalização. Por outro lado, alguns pesquisadores demonstraram que a gravidade da infeção inicial é o principal fator preditivo para o desenvolvimento do quadro crônico compatível com a SII-PI.
Em 2015, Schwille-Kiuntke et al. publicaram uma revisão sistemática e meta análise em que incluíram seis estudos e demonstraram a presença da SII após diarreia do viajante em 5,4% dos doentes (2.35-6.49) comparado com 1,4% em grupos-controle (P < 0.00001). A conclusão desses autores é que o risco relativo do desenvolvimento da SII após um episódio de diarreia do viajante (que pode ser causada por bactérias, principalmente Escherichia coli, vírus e parasitas) é, em média, três a quatro vezes maior.
Terapêuticas potenciais futuras para a SFGIs pós-infeção incluem agentes com efeitos anti-inflamatórios e medicamentos capazes de corrigir uma possível anormalidade da microbiota colónica (disbiose) como novos probióticos, prebióticos, simbióticos e antibióticos potentes, porém que sejam pobremente absorvidos.
Novos estudos se fazem necessários para que sejam definidos os reais fatores etiológicos de risco, os mecanismos fisiopatológicos fundamentais, a história natural e o real prognóstico das síndromes funcionais que surgem após infeção gastrointestinal.
Referências
Beatty JK, Bhargava A, Buret AG. Post-infectious irritable bowel syndrome: Mechanistic insights into chronic disturbances following enteric infection. World J Gastroenterol. 2014; 20: 3976-85.
Marshall JK, Thabane M, Garg AX, et al. Incidence and epidemiology of irritable bowel syndrome after a large waterborne outbreak of bacterial dysentery. Gastroenterology 2006;131:445–450.
Parry SD, Stansfield R, Jelley D, et al. Does bacterial gastroenteritis predispose people to functional gastrointestinal disorders? A prospective, community-based, case-control study. Am J Gastroenterol 2003;98:1970-5.
Schwille-Kiuntke J, Mazurak N, Enck P. Systematic review with meta-analysis: post-infectious irritable bowel syndrome after travellers' diarrhoea. Aliment Pharmacol Ther. 2015 ;41:1029-37.
Spiller R. Irritable bowel syndrome: new insights into symptom mechanisms and advances in treatment. 2016;5. pii: F1000.
Zanini B, Ricci C, Bandera F, et al. Incidence of post-infectious irritable bowel syndrome and functional intestinal disorders following a water-borne viral gastroenteritis outbreak. Am J Gastroenterol. 2012; 107:891-9.
Prof.ª Doutora Maria do Carmo Friche Passos, presidente da Federação Brasileira de Gastroenterologia